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Socialização feminina: dos contos de fada à realidade dos relacionamentos abusivos


Ao longo da minha vida, tenho acompanhado histórias de mulheres que vivem relacionamentos abusivos com homens, sem se darem conta disso. Vivem uma rotina em que são constantemente maltratadas, desprezadas e desrespeitadas; porém, é incrível como aprendem a relativizar a própria situação, fazendo de tudo para não admitirem para si mesmas que estão em um relacionamento abusivo. Sim, nunca é fácil admitir algo assim pra nós mesmas. Mulheres que estão nessa situação geralmente usam todo tipo de argumento para justificar os comportamentos do parceiro e aprendem a se contentar com migalhas: “Ah, mas pelo menos posso dizer que ele nunca me agrediu fisicamente”, “Bom, pelo menos ele trabalha, não bebe, não é alcoólatra”, “Pelo menos não posso negar que ele é um bom pai” ou “Pelo menos eu vejo que ele está se esforçando”. Aprendem a abaixar ao mínimo possível suas expectativas de um relacionamento feliz, para que assim justifiquem para si mesmas o porquê de ainda se manterem em um relacionamento que as maltrata. Culpam-se, em seus íntimos, pela situação que estão vivendo. Frequentemente, se cobram que poderiam se esforçar mais para ajudar o parceiro a ser uma pessoa melhor. Muitas vezes, sentem que têm que agradecer a Deus por ter um marido e uma família e pedem perdão por não estarem sendo boas o bastante para manter essa família de uma forma saudável e feliz.

Valores familiares, religiosos e a organização da sociedade como um todo coloca nas costas das mulheres a responsabilidade pela manutenção da família. Isso é de uma violência tamanha, porém, tão naturalizada que passa despercebido. As mulheres sabem que não é fácil assumir as consequências de sair de um relacionamento assim. Ser uma mulher divorciada, ou uma mãe solteira, tem lá seu peso na nossa sociedade, e não é pequeno. Ser uma mulher com mais de 30 anos e solteira também tem um grande peso. Em ambos os casos, você sabe que será julgada. Mas, se você está sendo diariamente maltratada pelo seu marido e tem suportado isso como uma heroína, tudo para manter sua família, há um pacto social sutil e silencioso que te parabeniza por isso. Que diz que você é guerreira, forte. Afinal de contas, eis o que se espera das mulheres: que abram mão de si mesmas em nome da família.

Por isso, gostaria de convidar a todas que estão lendo esse texto para refletir sobre o tamanho da violência dessas expectativas que são depositadas em nós. Estão nos pedindo que deixemos de existir como sujeito, como uma pessoa que quer e merece ser feliz.

Infelizmente, ainda faz parte da socialização e educação de meninas um aprendizado sistemático de que o relacionamento com um homem é essencial em nossas vidas. Meninos não são ensinados a pensar assim, isso gera uma assimetria na qual o relacionamento amoroso é imensamente mais valorizado e almejado por mulheres. Os primeiros brinquedos, os contos de fada da infância, os filmes românticos da adolescência, tudo funciona no sentido de alimentar nas meninas um sonho dourado no qual o relacionamento amoroso com um homem é fonte de realização. É extremamente difícil pras mulheres abrir mão disso e muitas passam a vida tentando e insistindo em situações que as machucam. Como se estar solteira fosse uma opção pior do que ter um homem que te maltrata.

A organização social, como um todo, funciona no sentido de manter isso: a violência masculina é naturalizada. Aprendemos a achar perdoável a violência dos homens. Aprendemos que temos que compreender, pois agem assim porque são homens. A heterossexualidade é ensinada como a única opção possível: uma mulher em um relacionamento abusivo ao menos não sofre o preconceito social que assola a vida de uma mulher que se assume lésbica. Apanhar do marido em casa é altamente compreensível. “Que Deus te dê forças, você vai vencer isso”. Mas estar feliz em um relacionamento lésbico, aí já é muita abominação.

A soma do machismo com a heterossexualidade obrigatória tem o efeito de empurrar mulheres para relacionamentos abusivos e mantê-las lá. Socialmente, isso é reforçado. Pois ao mesmo tempo em que existe a dureza do julgamento social que diz que “tem mulher que gosta de apanhar”, a verdade é que existe também, implícita, uma valorização da mulher que não sai de uma situação assim. Pois há um ensinamento religioso e cultural de que a mulher que se anula em nome da manutenção da família é “mulher de verdade”.

Precisamos começar a desmascarar essas mentiras que nos ensinaram. Não podemos deixar que nos tirem o direito de lutar por nós mesmas. Desejar ser feliz não é luxo, é direito humano básico. Aliás, eu diria mais: lutar para ser feliz é um dever que cada uma de nós temos conosco mesmas.

Se você está em um relacionamento abusivo, repense se vale a pena continuar se mantendo nessa situação. A sociedade não é mesmo muito acolhedora conosco, e sempre há um preço a se pagar por ser mulher. Mas talvez você esteja pagando o preço mais alto: o de desperdiçar a vida tentando se adequar a papéis que te disseram que você tem que assumir. Um relacionamento abusivo nem sempre envolve violência física e nem sempre é muito fácil de ser identificado. Mas se seu parceiro faz você se sentir coagida ou se seu relacionamento gera em você sentimentos negativos com certa frequência, comece a se questionar. Não temos que ser compreensivas com tudo e muito menos temos que assumir o papel de salvadoras de homens problemáticos, explosivos, egoístas, inseguros ou possessivos. Se a sua relação amorosa só existe porque você cede muito mais do que ele para que continuem juntos, há algo de errado nessa situação.

E lembre-se: você não está sozinha. Sempre há onde procurar apoio, basta saber procurar. Precisamos urgentemente começar a construir um mundo onde ser “mulher de verdade” envolva ser alguém que se coloca em primeiro lugar.

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