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Somos uma legião de pessoas inaptas para se relacionar


Relacionar-se com outro ser humano é tarefa mais difícil do que pensamos. Se fosse disciplina acadêmica, teria várias outras como pré-requisito, dentre as quais a mais importante seria sobre relacionar-se consigo mesmo. Somos uma legião de pessoas com um nível de autoconhecimento capenga. Não nos conhecemos, não sabemos entender nossas emoções, quem dirá comunica-las a outra pessoa. Nossos relacionamentos interpessoais sofrem as consequências do nosso péssimo relacionamento intrapessoal.

Certa vez, li: “Falta amor no mundo, mas também falta interpretação de texto”. Acho que quem escreveu isso tem toda razão. Mas tem uma coisinha que faz uma falta absurda e que quase ninguém percebe: Está faltando EDUCAÇÃO EMOCIONAL.

Crescemos indo à escola para aprender a ler e fazer contas, em casa aprendemos a ser educados com as pessoas, mas ninguém nos ensina a decifrar e conhecer nossas emoções. Não é algo que seja uma prioridade em uma cultura patriarcal/capitalista. No meu trabalho com pessoas adultas buscando se conhecer melhor, é muito interessante ver como cada explicação simples sobre nossas emoções e comportamentos provoca reações de um espanto inocente, como crianças aprendendo pela primeira vez sobre como funciona o corpo humano.

Uso sempre uma formulazinha simples da Psicologia Cognitiva para detectar crenças nucleares das minhas pacientes: uma crença gera pensamentos, que por sua vez gera sentimentos, que por sua vez gera comportamentos, que quase sempre comprovam as crenças nucleares. Se não tratamos de identificar as etapas desse ciclo, podemos passar a vida presos nele sem nos dar conta. Crenças nucleares negativas sobre nós mesmos e sobre o mundo nos levam a comportamentos tóxicos que confirmam nossas crenças negativas. Não é fácil sair desse ciclo sem uma ajuda profissional.

Esse deveria ser um ensinamento básico a ser passado já na infância. Mas, infelizmente, a verdade é que nossa sociedade é formada por adultos extremamente e lamentavelmente despreparados para lidar com o desenvolvimento emocional de uma criança.

A grande maioria de nós somos adultos oriundos de famílias disfuncionais. Família disfuncional não tem nada a ver com padrões tradicionais. A ideia de relacionar o conceito de família tradicional com família funcional é totalmente equivocada. Não existe essa relação. A obrigação de manter o padrão tradicional de família (papai, mamãe e filhinhos) só gera mais e mais famílias disfuncionais pelo mundo. O que uma criança precisa para se desenvolver bem não tem a ver com estar inserida em uma família tradicional. Tem a ver com estar imersa em um contexto que a permita ter mais contato com sentimentos positivos de segurança, amparo e alegria do que com sentimentos negativos de insegurança, angústia e tristeza. É isso o que importa. Como isso vai ser feito, importa muito pouco.

Os valores cristãos têm mais força do que pensamos em nossas representações sociais, e o discurso cristão em prol da família é um veneno que tem como efeito a manutenção de famílias disfuncionais, logo, a manutenção de crianças em lares infelizes. Como disse, a maioria de nós é oriunda de famílias disfuncionais. Isso pode ser preocupante, mas serve também no sentido de tranquilizar muitas pessoas que crescem com complexos familiares pelo fato de sua família não se encaixar no que aprendemos a esperar de uma.

Os adultos do mundo estão muito ocupados com suas próprias questões mal resolvidas, confusões emocionais e infelicidade para se ocuparem da complexidade das questões emocionais das crianças. Pensem isso de uma maneira mais ampla, como sociedade. Não estou falando apenas do que se passa dentro das casas. Estou falando de um mundo que não sabe ser acolhedor com a infância e que por isso gera adultos complexados, problemáticos, cheios de feridas em sua criança interior. Entenderam o meu ponto?

Agora pensem: como poderíamos nos tornar pessoas aptas ao relacionamento interpessoal, se fomos crianças que cresceram nesse mundo nada acolhedor? Se fomos crianças em lares disfuncionais com pais que estavam ocupados demais com o próprio sofrimento para olhar para o nosso? Se nossos pais acreditavam que a maneira de nos fazer bem era se manter sofrendo? Se crescemos em um mundo em que os adultos à nossa volta estavam confusos demais para nos explicar o que se passava dentro da gente?

O mundo é uma legião de adultos que cresceram tendo suas emoções negligenciadas. Em casa, na escola, em todos os lugares. Não existe educação emocional para as crianças. Não existe o devido acolhimento que as emoções infantis merecem. Nos preocupamos demais em ensinar limites e nos preocupamos de menos em acolher, entender e explicar o que está se passando.

Na verdade, não sabemos o que está se passando conosco.

Somos mulheres e homens treinados para negligenciar as próprias emoções. Treinados para acreditar que se preocupar com isso é bobagem. Que a vida é produzir, trabalhar, seguir o script. Treinados para acreditar que a vida é esforço. Parar para olhar para minhas emoções é perda de tempo. O relógio está correndo. Não temos tempo para isso. O capitalismo nos ensina a competitividade e fomenta nosso desamparo, ao mesmo tempo em que nos faz acreditar que ele será sanado com algo pelo qual tenhamos que pagar. O patriarcado, por sua vez, nos ensina a valorizar um modelo de ser humano com base nas características associadas ao masculino: racionalidade e frieza emocional. Mal sabemos que frieza emocional está longe de significar força. As pessoas emocionalmente frias são geralmente as mais frágeis.

E, dentro dessa lógica, atravessados por todos esses fatores, em meio a todos esses malabarismos, estamos aí, complexados e mal resolvidos, nos arriscando a nos relacionar com o outro, tão complexado e mal resolvido quanto nós.

E, então, queremos ser ouvidos naquilo que não sabemos falar. Queremos ser atendidos naquilo que não sabemos pedir. Esperamos do outro coisas que não fazemos por nós mesmos. O egoísmo toma conta: somos crianças birrentas querendo ter nossas necessidades emocionais atendidas, ao mesmo tempo em que negamos que essas necessidades existem. Claro que não existem, sou bem resolvido demais para isso. Na tentativa de corresponder ao modelo de adulto frio e racional, nos negligenciamos, negligenciamos o outro, negligenciamos nossas crianças e, quando a infelicidade vem, geralmente existem dois caminhos: ou culpamos o outro por ela (quanto maior meu nível de alienação de mim mesmo, maior a possibilidade disso acontecer) ou então nos obrigamos a lidar com ela sozinhos. Afinal, buscar ajuda profissional e se colocar no lugar de quem precisa de ajuda para lidar comigo mesmo é muita fraqueza.

Boa sorte para nós nessa empreitada fadada ao fracasso.

O que eu desejo é que as pessoas se toquem de que cultivar educação emocional, que seria o aprendizado sobre as próprias emoções, é tão importante quanto ensinar matemática, geografia ou a dizer obrigado.

E, assim, quem sabe, possamos construir um mundo de pessoas mais preparadas para lidar consigo mesmas, logo, para lidar com o outro também.

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