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A masculinidade é um trauma: uma análise do filme "Duas Vidas"




Eu tive conhecimento do filme “Duas vidas” no curso de Psicotrauma, ministrado pelas professoras Liana Netto e Cecília Lauriano, no qual a professora Cecília apresentou uma análise deste filme. Eu gostaria de apresentar aqui a minha análise, pelo viés de gênero.


Ao assistir ao filme e principalmente depois de ver a análise da professora, eu me perguntei como, em cinco anos de graduação em Psicologia, ninguém havia me recomendado este filme até então! Nunca tinha ouvido falar nele e, depois de assistir, acho que é um filme que nenhum psicólogo ou terapeuta pode deixar de assistir.


O simbolismo presente neste filme é riquíssimo! O encontro com nossos complexos, nossos traumas, nossas versões mais jovens ou com aquelas partes de nós mesmos que nos pedem atenção é ilustrado de uma maneira muito interessante.

O que eu quero apresentar é a minha leitura pelas lentes da masculinidade tóxica.


O protagonista é um cara de 40 anos, solteiro, bem de vida, muito bem-sucedido e com mulheres à sua disposição, mas que não está emocionalmente disponível para envolvimentos mais profundos. É um homem que não faz contato com suas emoções mais profundas, um cara frio e totalmente impaciente para demonstrações emocionais de quem quer que seja. Ou seja, Russ é o retrato da masculinidade hegemônica: branco, heterossexual, bonito e – claro – impassível, inabalável e insensível.


Russ começa a ser visitado por um menino, que depois descobrimos que é ele mesmo quando criança. Então, ele, com sua típica impaciência, começa a tentar identificar o que ele precisa fazer para que essa “alucinação” pare de aparecer para ele. Ele começa a tentar descobrir onde ele precisa ajudar o menino, para que ele suma. Essa relação ilustra, de uma maneira belíssima, a nossa relação com nossas partes que nos pedem atenção e cuidado: geralmente, queremos saber o que precisamos fazer para que elas sumam. Não queremos saber o que a nossa ansiedade ou nossa insegurança têm a nos dizer. Normalmente, só queremos saber como fazer para que elas desapareçam.





Russ começa a aprofundar sua relação com o menino e se lembra de que ele sofria bullying e apanhava de alguns garotos na escola. O que ele conclui, então? Claro: ele conclui que precisa ensiná-lo a lutar! Um homem que incorpora em si a masculinidade hegemônica não poderia chegar a outra conclusão. Essa é a solução da masculinidade: lute, brigue! O aprendizado da violência é um requisito básico da masculinidade, em uma cultura patriarcal.


Então, Russ começa a ensinar o pequeno gorducho a dar socos para que ele pudesse enfrentar os covardes da escola. Quando chega a cena em que ele vai brigar com os tais covardes, o que me chamou a atenção é que foi uma briga para defender um cachorrinho. Os outros meninos estavam maltratando o cachorro e a briga aconteceu porque o pequeno Russ queria defender o animalzinho. Esse detalhe me atravessou de uma maneira muito forte porque, ali, vemos, nitidamente, que algo se colocou no caminho entre aquele pequeno Russ – um menino sensível, amoroso e que não sabia brigar – e o adulto Russ – um típico macho estoico. E esse algo que se colocou nesse caminho e silenciou a sensibilidade desse menino se chama MASCULINIDADE TÓXICA. É isso o que a masculinidade tóxica faz: transforma meninos doces em homens violentos e opressores. O modelo de masculinidade hegemônica que opera em uma cultura patriarcal é extremamente violento com os meninos, nesse sentido. Porque ela lhes rouba a espontaneidade, a sensibilidade, a possibilidade de terem sua vulnerabilidade acolhida. E é exatamente na cena que se segue que vemos isso perfeitamente ilustrado.


Após o pequeno Russ finalmente vencer a briga com os covardões, percebe-se que nada mudou. O Russ adulto continua ali, nenhuma mudança acontece. E é aí que cai a ficha: não era essa a solução. Ensinar o pequeno Russ a brigar não ajudou. E então, ele se lembra de que havia algo mais para acontecer naquele dia. E ele avisa ao pequeno gorducho: “Vai ficar pior”.

A mãe do menino é chamada na escola por causa da briga. E, ao voltarem para casa, encontram com o pai do menino, que estava chegando em casa junto com eles. A mãe estava com alguma doença grave e morreria em poucos dias. O pai, ao ver que ela havia sido chamada na escola por problemas causados pelo menino, fica extremamente bravo com ele e as palavras que ele usa com o menino ilustram com perfeição a maneira como os meninos são educados e o que se espera deles. O pai culpa o menino, fala que a mãe dele irá morrer e que a culpa é dele, e repete algumas vezes “Para de chorar! Cresce!”.


Nessa cena, vemos a sensibilidade do pequeno Russ sendo podada. São outras palavras para o famoso “Vira homem!”, que os meninos tanto ouvem. É neste momento que ele aprende que chorar não é bem-vindo, que expressar seus sentimentos não é bem-vindo, e que o que ele precisa fazer é dar conta sozinho de sua dor e não a expressar. É assim que ele se torna uma pessoa que não tem paciência nenhuma para a expressão emocional de ninguém. Pois alguém que não acolhe as próprias emoções não saberá acolher emoções alheias também. A partir deste dia, ele se torna um menino que não chora.


Há algo que merece atenção aqui: o fato de que quem reprime as emoções do pequeno Russ e, assim, o ensina a se reprimir, é o pai. Esse fato é importante porque precisamos reconhecer que a masculinidade é um ensinamento que é repassado, sobretudo, de homens para homens. Não é justa a maneira como as mães levam, no discurso do senso comum, a culpa maior pela maneira como os meninos são formados, como se fossem as mães que criassem meninos machistas. Não que muitas mães não tenham uma boa contribuição nisso, mas não são as mães que incentivam meninos de 13 anos a experimentar bebida alcoólica – são colegas, meninos mais velhos e, muitas vezes, o pai. Assim como são outros homens também que levam meninos a prostíbulos, que ensinam a falar palavrão, que apresentam a pornografia, que ensinam a objetificar o corpo do sexo feminino. Precisamos compreender que o próprio significado da masculinidade, em uma cultura patriarcal, é algo extremamente tóxico, de forma que o tão usado termo “masculinidade tóxica” se torna um pleonasmo. A masculinidade é um trauma. Ou melhor, é um conjunto de eventos traumáticos que faz com que meninos muito jovens vivam experiências sobre as quais ainda não possuem recursos psíquicos para lidar, de forma necessariamente solitária, pois há um forte aprendizado de que a vulnerabilidade é inferior, é “coisa de mulherzinha”.


Aqui, chegamos, então, ao ponto máximo dessa discussão: Todo esse trabalho de traumatizar meninos, de lhes roubar a sensibilidade, de lhes tolher a espontaneidade para lhes ensinar a ser “machos”, só existe porque vivemos em uma cultura de ódio ao feminino. Tudo vale para não ser “mulherzinha”, tudo é válido para não ser “maricas”, para não ser “veadinho”. É melhor traumatizar meninos e transformá-los em homens adoecidos, sofrendo com problemas de vícios, de pressão alta, de câncer, do que renunciar à hierarquia sexual que tanto oprime mulheres e homossexuais.


Os homens têm preferido adoecer a renunciar ao privilégio social da masculinidade, a abrir mão de um ilusório poder que se baseia em violentar, diminuir e desprezar tudo o que se refere ao feminino. Todos sofrem, todos saem perdendo, todos saem adoecidos.




Esse filme me atravessa especialmente por eu ser mãe de menino. Um menino lindo, meigo e doce, que eu espero que jamais perca sua ternura. Pois desde que me tornei sua mãe, convivo com o medo de ver acontecer o que acontece todos os dias com várias mães pelo mundo afora: mães perdem seus filhos para o patriarcado todos os dias. Vivemos em um mundo em que homens cometem estupro coletivo e enviam áudio a colegas fazendo piada com a situação (faço essa menção na certeza de que quem me lê sabe a que estou me referindo, pois trata-se de um caso mundialmente noticiado). Vivemos em um mundo em que um homem que se forma como anestesista é capaz de estuprar uma mulher que está no momento mais sagrado de sua existência – parindo uma vida! Vivemos em um mundo em que homens espancam mulheres que acabaram de parir um bebê. Todos esses homens que fizeram e fazem isso têm mães. E eu não consigo imaginar a dimensão da dor de perder um filho para o patriarcado dessa maneira.


Nenhuma mãe cria um filho para se tornar estuprador. Nenhuma mãe cria um filho para odiar mulheres. E todas as mães deveriam fazer a reflexão sobre a importância de incluir o feminismo na educação de seus filhos, no sentido de ensiná-los o respeito ao feminino.


Quantos meninos estão sendo ensinados a lutar e ser fortes, quando, na verdade, o que lhes salvaria é o amor e o acolhimento, assim como aconteceu com o pequeno Russ? Aprender a lutar não o ajudou muito, mas quando ele pôde ser acolhido pela sua versão adulta, quando ele pôde chorar, quando ele não mais precisou dar conta sozinho de sua dor – aí sim, uma grande mudança acontece em seu caminho. Por que estamos tão preocupados e preocupadas em ensinar aos meninos a agressividade, a se virar sozinhos, ao invés de parar e escutar o que realmente demanda seus ingênuos corações?


Meninos machucados tornam-se homens que machucam. E que machucam, principalmente, mulheres e crianças. Meninos feridos buscam recompensas em formas ilusórias de poder – oprimem e violentam para experimentar um senso de valor próprio que não conseguem sentir de outra forma. Essa equação, por vezes, descamba em verdadeiros desastres, que têm nas mulheres e nas crianças seus principais alvos.


Do que mais precisamos para ver que isso não está funcionando para ninguém?

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